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Descentralização ou municipalização da educação - O caso das atividades de enriquecimento curricular

Luís Pargana*
Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal do Crato
 

Conceitos como a “autonomia”e a “descentralização” educativa são temas recorrentes no debate educativo e constam dos preâmbulos e formulação de princípios de inúmeros diplomas legais que visam regular as políticas educativas e as competências das diversas instâncias do sistema educativo.

No entanto, o consenso em torno destes princípios gerais está longe de ser alcançado, sobretudo no que se refere à sua concretização prática.

Até que ponto a “autonomia” reflete uma efetiva capacidade de decisão por parte dos agentes educativos, nomeadamente os professores, centrada nos processos pedagógicos e nos atos educativos, ou a “descentralização” significa uma real partilha de competências de gestão e administração do sistema educativo entre diversos patamares da administração educativa.

O debate sobre a municipalização do sistema educativo insere-se nesta dicotomia e resulta, antes de mais, da ausência de uma autarquia regional prevista na Constituição da República Portuguesa, mas nunca concretizada e que tem sustentado todo um aparelho desconcentrado da administração educativa, de âmbito local e regional.

É neste contexto de busca de eficiência na administração educativa que é publicado o Decreto-Lei n.º 144/2008, de 28 de Julho que estabelece as regras da “descentralização de competências para os municípios na área da educação”, prevendo a celebração de contratos de execução referentes a:

  1. Pessoal não docente do ensino básico;

  2. Atividades de enriquecimento curricular;

  3. Gestão do parque escolar nos 2º e 3º ciclos do ensino básico

Para enquadrar a descentralização de competências proposta, o diploma legal refere no seu preâmbulo “como muito positiva a experiência desenvolvida pelos municípios no âmbito do sistema educativo, de que são exemplo incontornável a implementação da educação pré-escolar, a criação e funcionamento dos conselhos municipais de educação e a realização das cartas educativas” concluindo pela “necessidade de contratualizar com os municípios a resolução dos problemas e a redução das assimetrias que subsistem na prestação do serviço educativo”. 

Não serão estes, porventura, os melhores exemplos de eficiência do sistema educativo municipalizado. Desde logo as cartas educativas, elaboradas pelos municípios para planeamento da rede escolar e da oferta educativa nos seus territórios, foram as primeiras a ser desautorizadas pelo Ministério da Educação ao determinar o sucessivo encerramento de estabelecimentos de ensino fundamentado apenas no critério do número de alunos e no agrupamento administrativo das escolas e jardins de infância.

Desvirtuado o alcance deste instrumento de planeamento municipal do sistema educativo (as cartas educativas), também o órgão de participação da comunidade e de aconselhamento municipal (o conselho municipal de educação) perde terreno para os conselhos gerais das escolas que reúnem docentes, discentes, pais e encarregados de educação, pessoal não docente e representantes da comunidade local e do município. Por duplicar as representações, ao mesmo tempo que possibilita contextualizar o debate em torno da realidade concreta da escola ou agrupamento de escolas, o conselho geral de escola esvazia de conteúdo o conselho municipal de educação, reduzindo-lhe a eficácia.  

Mas, a contratualização pelos municípios das novas competências previstas no Decreto-Lei n.º 144/2008, de 28 de Julho está para além da avaliação objetiva ou subjetiva dos exemplos contidos no seu preâmbulo e extravasa o âmbito da presente reflexão. Esta análise será, assim, centrada nos aspectos relacionados com as atividades de enriquecimento curricular (AEC) previstas no artigo 11º do referido diploma legal e que determina: 

  1. São transferidas para os municípios as atribuições em matéria de atividades de enriquecimento curricular no 1º ciclo do ensino básico, sem prejuízo da tutela pedagógica, orientações programáticas e definição do perfil de formação e habilitação dos professores.

  2. Consideram-se atividades de enriquecimento curricular no 1º ciclo do ensino básico as que incidam nos domínios desportivo, artístico, científico, tecnológico e das tecnologias da informação e comunicação, de ligação da escola com o meio, de solidariedade e voluntariado e da dimensão europeia da educação, nomeadamente:

  1. Ensino do Inglês;

  2. Ensino de outras línguas estrangeiras;

  3. Atividade física e desportiva;

  4. Ensino da música;

  5. Outras expressões artísticas e atividades que incidam nos domínios identificados

Importa referir que tanto a Constituição como a Lei de Bases do Sistema Educativo estabelecem direitos de universalidade no acesso e sucesso na educação e definem o ensino básico universal, obrigatório e gratuito. Este deve assegurar uma formação geral comum a todos, que lhes garanta o desenvolvimento e a descoberta dos seus interesses e aptidões e promova a realização individual, em harmonia com os valores da solidariedade social. 

Ora, as denominadas atividades de enriquecimento curricular, no modo como são implementadas, retirando do currículo do 1º ciclo áreas fundamentais para a formação das crianças (Educação Física, Educação Musical e Expressões Artísticas) e tornando-as facultativas, são exemplo de uma reestruturação do sistema educativo baseada num conjunto de medidas setoriais e avulsas, ao arrepio do normativo constitucional e da Lei de Bases, que desresponsabiliza o Estado e subalterniza os critérios pedagógicos em prol de critérios economicistas. 

As atividades de enriquecimento curricular representam, assim, um retrocesso, no plano pedagógico, face ao consagrado na Lei de Bases que preconiza o ensino globalizante para este ciclo, da responsabilidade de um professor que pode ser coadjuvado por outros profissionais, em áreas especializadas (o autor defende que a coadjuvação seja feita por docentes especializados, mas essa é matéria para outra reflexão). 

O debate em torno da “monodocência coadjuvada” espoletado na transição do século, no âmbito da reorganização curricular do ensino básico, que alimentou expetativas de emancipação profissional e organizacional para o 1º ciclo do ensino básico, ficou comprometido com a implementação destas atividades, de caráter extracurricular e que, ao serem assumidas por entidades promotoras - as autarquias na maioria dos casos (67% no ano lectivo 2008/2009) - significam a privatização de importantes parcelas da escola pública no ensino básico, uma vez que são maioritariamente asseguradas por empresas privadas contratadas para o efeito, sem garantia da universalidade neste nível de ensino e com dificuldades acrescidas no controlo da qualidade do serviço prestado. 

Estas atividades apresentam-se, no essencial, como mais um período letivo, com a consequente desadequação da carga horária para as crianças, significando mais tempo letivo sobre o horário letivo, sem tempos lúdicos nem diferenciação de espaços e agravando os problemas da falta de espaços nas escolas, da falta de auxiliares de ação educativa e da desarticulação com o período escolar. 

As apressadas e pouco fundamentadas declarações de sucesso em relação às atividades de enriquecimento curricular têm induzido a ideia do caráter definitivo desta medida, provocando a sua “rotinização”, ao mesmo tempo que se faz tábua rasa das dificuldades objetivas na sua aplicação que estão devidamente sinalizadas e constam de diversos relatórios onde, entre outros aspetos, são assinalados: 

  • A dimensão excessiva e a heterogeneidade das turmas;

  • O cansaço, a indisciplina, a assiduidade dos alunos e o horário de lecionação;

  • A insuficiência de materiais e de espaços adequados à lecionação das AEC;

  • A fraca articulação entre os professores das AEC, os restantes docentes e os respetivos departamentos dos agrupamentos de escolas;

  • A não integração das AEC nos projetos educativos das escolas.

 

(Leia-se a este propósito os Relatórios de Acompanhamento das AEC – 2007/2008 e 2008/2009 – da Comissão de Acompanhamento do Programa – Direção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular – Ministério da Educação;

Relatórios da Associação Portuguesa de Professores de Inglês, da Associação Portuguesa de Educação Musical, do Conselho Nacional das Associações de Professores e Profissionais de Educação Física e da Sociedade Portuguesa de Educação Física e ainda o Relatório do CIES – ISCTE - Atividades de Enriquecimento Curricular: Caso de Inovação e Boas Práticas, todos de 2009)

 

As atividades de enriquecimento curricular podem, no imediato, ir ao encontro das necessidades das famílias, garantida que está a guarda dos filhos até às 17.30h, mas estão longe de ser um contributo para o seu desenvolvimento equilibrado.

 

No entanto, a transferência desta competência para as autarquias locais, introduz um fator de distorção na reflexão sobre o efetivo alcance desta medida transferindo os critérios da sua avaliação para uma dimensão social e de apoio às famílias, em detrimento da dimensão pedagógica e da afirmação de uma escola promotora da igualdade de oportunidades para o sucesso educativo e escolar de todas as crianças.

 

Constituindo as atividades de enriquecimento curricular um exemplo de administração de actividades de natureza letiva por parte dos municípios que assim o contratualizaram com o Ministério da Educação, as contradições que contém não encerram o debate sobre a municipalização do sistema educativo, antes o relançam com redobrada acuidade e oportunidade.

 

 

*(Professor do 1º Ciclo, com pós-graduação em Ciências da Educação - Educação, Desenvolvimento Local e Mudança Social, pela Universidade do Porto; Vereador da Educação na Câmara Municipal de Portalegre, entre 2002 e 2005;  Presentemente desempenha as funções de Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara Municipal do Crato)