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Editorial - 02
Formação PTE
Projecto ‘TurmaMais’
Matemática 1º CEB
Educar Sexualidade
Avaliar a Aprendizagem
N. Prog. Português
Sexualidade
Educ./Poder Local I
Educ./Poder Local II
Educ./Poder Local III
Educ./Poder Local IV
Escola Electrão
Dia da Escola
TIC e Ed. Musical
... eternamente Aluno?!
Avaliação e PEA
A Tapada da J. Régio
Afectividade e Deficiência
Formação Contínua
Desalinhos
Formação como Projecto
Enfoque nas Soluções
Formação e BEs
Quem nasceu em 34?
O meu aluno Albino
As aulas da noite
Cartoon

 

 

Quem nasceu em 34?

Carlos Garcia de Castro

1.

A escola onde eu andei era um liceu que se chamava Mouzinho da Silveira. Só dava para o 5º ano (agora o 9º), também dito 2º ciclo. Em 1950, a frequência era de duzentos e vinte alunos. Havia no país o preconceito de que para os liceus iam os filhos dos ricos. Se alguns mais remediados prosseguiam nos liceus, tínhamos colegas de origem muito pobre, por quem os pais, na aspiração de que eles não ficassem por operários, faziam sacrifícios incalculáveis, até na alimentação. Os ricos, verdadeiramente, muito poucos, eram os filhos de lavradores abastados.

Os professores, todos efectivos, de cultura, interesses e preocupações do banal quotidiano dos funcionários, assentaram raízes na cidade em que foram envelhecendo de monotonia e regalo provinciano. Eram só catorze, mas nem todos se davam entre si com amizade, alguns emparelhados somente por decência e cortesia. Dois havia que podiam ser perigosos, quando de alguma guerra com os pais de alunos em quem se vingavam, acutilando-os nas aulas e descontando-lhes nas notas. Politicamente, a não ser o Dr. Reis Pereira que, talvez por ser poeta, às vezes tinha birras e exigências e era da Oposição, ou o Dr. Crespo, o mais afável e coloquial dos professores, também da Oposição mas muito calado nisso, fora parte o Galiano e o Fernandes de Carvalho, activistas da Situação, dos outros não se sabia o que pensavam. Mas todos, porém, se igualavam de ordenados muito baixos para a função. Ainda assim, as férias eram de dois meses, fora as do Natal, do Carnaval e da Páscoa. Também não atormentados de reuniões nem de outros protocolos que infernizam, hoje, o tempo de utilidade dos professores. Vistas as coisas, era bem boa a profissão de um professor do liceu.

Verificava-se que só o Crespo e o Reis Pereira eram homens de cultura, um pelas aulas que produzia, o outro por situação extra-profissional, isto a propósito das companhias e civilidades que frequentavam. Dava-se, no geral, a inconveniência de, por habitarem longos anos na cidade, irem conhecendo vária gente e ganhando relações, as permutas de favores facilitarem as cunhas. Eram muitas, ainda que só concentradas nuns tantos. Mau pai tinha uma loja de fazendas, e esses, gulosos e diligentes, quando lá compravam, gozavam dos preços de custo. Ditos professores do ensino secundário, por diferença de habilitação dos do ensino primário (o actual 1º ciclo), que não eram licenciados. Como professores do liceu ascendiam à distinção do estatuto com que a cidade para com eles exorbitava. O Regime favorecia-lhes o poder, no que era acompanhado pela conformação dominante das cidadanias em reverências e distanciamentos, privilégios e cerimónias. Os professores do liceu eram, assim, na acepção mais intensa das palavras, uns senhores doutores. Isso revestia-os de uma autoridade que muitos deles concebiam em autoritarismo, afinal uma autoridade de convento: só portas adentro ou das aulas ou da instituição a praticavam. Vinham depois as notas do fim de período, aritméticas. Resultavam da classificação, por cada período lectivo, de dois exercícios escritos e uma ou duas chamadas orais, conforme a extensão das turmas desse tempo para isso, contabilizando-se a média final do ano. Os exames, então, para o bem ou para o mal, haviam de resolver tudo. Os professores actuavam sempre bem, os alunos é que não estudavam, caso reprovassem. Para o resto, os que podiam pagavam cá por fora a explicadores; os que não podiam ficavam à mercê da sorte. Toda a pedagogia era vertical: o professor em cima, o aluno em baixo, didáctica expositiva a condizer. O respeito também era organizado: se um professor se avistava nos cafés, já não se entrava. Trabalhavam muito menos do que os professores de agora. Os programas mantinham-se eternidades sem alterações, o que levava à rotina. As aulas, com a prática, enquistavam-se, repetidas todos os anos. As características das turmas nunca eram consideradas, pelo que as lições dispensavam consuetudinariamente qualquer preparação ou adaptação.

Já estávamos no 4º ano, abriram as salas de estudo. Funcionavam à tarde, depois das aulas, por duas horas. Inscrevíamo-nos nelas mercê de uma quota acessível que, julgo eu, ia em proveito dos professores aderentes. Tiravam-nos dúvidas e repetiam, esclareciam as explicações das aulas. A maior vantagem foi a proximidade de relação com os professores; isso, porém, sem se repercutir para melhor no estilo das aulas. Para a Matemática, aparecia o padre Carvalho, o professor de Moral, logo professor do liceu, o que lhe legitimava a presença. E sabia que se fartava não só de Matemática, mas de Os Lusíadas e de Francês. Era dos mais solicitados.

 2.

Tenho no meu escritório a fotografia do nosso 3º ano (1948) tirada no Pátio da Palmeira com o reitor, Albino Honório de Freitas; o Dr. Luís Maia, o “Marmanjo”, assim se nos dirigia em Ciências Naturais, empunhando um osso comprido do esqueleto armado com arames, eterno e perfilado naquela sala; o Dr. Estêvão Pinto, vestido que nem um mordomo, cara de pau, ciente de figura e de pavor; e a “Clotes”, Da. Clotilde, professora de Música, solteirona e regente do orfeão. Cinco raparigas e vinte e três rapazes. Dos que não estavam de capa e batina, só três não puseram a gravata, naquele dia. Todos os mais educados à burguesa, de condição com a época, sem sinal de rebeldia no vestir, quer dizer, obedientes, submissos à conformidade civil predominante. O “Patito” até ainda estava de calções. Na verdade, sabíamos ser rapazinhos. Não havia modas de marca e o modelo da imitação adolescente eram os actores de cinema, de facto e de gravata, à Cary Grant, e como lá em casa os nossos pais. As raparigas, compostas como senhoras, mostravam-se, naquela idade, em meias de cano alto pelo joelho, tecidas de cordão branco. Era fácil impor autoridade, de mais a mais num local hierarquizado, onde os contínuos se fardavam de azul-escuro.

Acabava-se o liceu, em média com 15 ou 16 anos. Uns seguiam para o Magistério Primário, outros à espera da idade para concorrerem às repartições. Dos que prosseguiram estudos, dois saíram catedráticos, uns poucos professores, um juiz procurador, três médicos, um coronel. Sete já morreram. A escolaridade era obrigatória só até final da instrução primária. Quase não custava arranjar emprego.

De todo o distrito vinha a malta para estudar. Tinham de ficar hospedados, a não ser que, acompanhados pelas mães, se instalassem de aluguer. Só havia este liceu. Na nossa turma, metade era daqui natural. No geral, o liceu fora um desmame, para alguns com sofrimento, com a Praxe, nos recreios e, nas aulas, com a distância a que estes novos professores os colocavam. Pelas ruas, os de fora tinham também de se ambientar, pela rusticidade das origens em confronto com a cidade e os costumes de estranhos na hospedagem.

O João Tavares era um homem do sensível. A pretexto de introdução sobre o que seria o desenho, partiu ao meio um pau de giz, e com as mãos em simultâneo, de lateridade perfeita, desenhou no quadro uma bilha de bojo irrepreensivelmente simétrico. “O gajo deve ser bom”, pensamento de caloiro.

O reitor adquiriu a confiança popular. Por muito simples, pensava-se que apagado, até em relação a colegas que continha e, nisso, porque dotado de perspicácia psicológica na convivência, profissional e social. Proporcionava um ambiente disciplinar e administrativo que lhe valeu uma infinidade de anos em funções. Era bondoso. O Azeitona, contínuo, não nos ameaçava com ele, mas com o Galiano Tavares, vice-reitor: - A coisa é esta, você vai já comigo ao Snr. Dr. Galiano. A 12 de Fevereiro fazia anos o reitor. Não me esqueci, porque nesse dia se suspendiam as aulas da tarde, para a tradição de lhe fazermos a festa com um lanche prolongado, mais o baile. Já eu estava na Faculdade quando o encontrei no intervalo de um cinema. Tivera-o a Matemática dez anos antes, mas reconheceu-me e tratou-me pelo nome, o que atesta que, não só reitor, se concentrava nos alunos. Em Páginas do Diário Íntimo, José Régio, sabido de experiências na amizade, recorda-o com comoção e elogios.

Davam-nos férias para os exames finais de curso, cujo currículo se formava da Secção de Letras (Português, Francês, Inglês, História e Geografia) e da Secção de Ciências (Matemática, Físico-Química, Ciências Naturais e Desenho), isto no 2º ciclo (3º, 4º e 5º anos); do 1º ciclo já não me lembro, só que no 2º ano se tinha também exame, como prova de transição. Entrava-se no liceu com outro exame, o de admissão, que mais não era do que a repetição da 4ª classe do ensino primário. A diferença é que metia mais aflição, por efeito da responsabilidade se converter em solene, segundo a mentalidade pública de que um liceu valia mito, tal a importância dos agentes lá activos. Também porque sem se fazer o liceu não se acedia com facilidade a empregos que não fossem laborais. Tanto que os alunos da Escola Industrial, quando a inscreverem-se na Acção Católica, faziam-no para a JOC (Juventude Operária Católica) e os do liceu, para a Juventude Escolar Católica, a JEC.

As salas de aula assumiam o professor num estrado que lhe encavalitava os dizeres. Os mais preguiçosos raramente de lá saíam, sentados no cadeirão de braços que lá punham para eles. Nós, obviamente sossegados nas carteiras, individuais ou de quatro lugares, todas consistentes de ferro e de madeira. Nestas mais largas sentávamo-nos a dois e dois, o que para o copianço dava jeito.

Primoroso era o ginásio! uma cave acimentada, a poeira aos cantos, janelas rebatidas, tipo frestas-de-lei. E o “Salta”, o professor Chambel, de sobretudo quando era inverno, a fumar lá dentro, enquanto nos dirigia as alpercatas. O resto do equipamento era de calças vestidas e em mangas de camisa.

Ocorrem-me os exames orais. As salas chegavam a ficar apinhadas dos assistentes: familiares, professores e directores de colégios, explicadores, padres e curiosos, gente que acompanhava os externos, em expectativa, a tirar notas das questões mais duvidosas dos examinadores e lhes estudava o estilo interrogatório. O mais bizarro é que aos professores em serviço, se fumadores, era permitido fumar, mesmo enquanto interrogavam. Este um dos sinais mais distintivos de como se geriam as posições da relação pedagógica.

O pátio deste liceu é, garantidamente, a memória mais salutar, por vezes endiabrada, que nos ficou da juventude, diria que também da inocência. Jogava-se lá à bola – da “Fanheca”, que eram as mais caras, de lona e de cotim militar, duras e resistentes. Decorria lá a Praxe, moderada, comparando-a com as de agora: a “coroa” para o pau da bandeira (cinco tostões), as barrelas (urtigas em molho de água para a ranhura das cuecas), carecadas e tarefas. – Ó caloiro, coce-me aqui as solas até eu me rir com cócegas.  

As raparigas desciam para o recreio por uma escada interior ao fundo de um corredor, no rés-do-chão. Usando um contraforte acessível, amarinhava-se pelo muro que as separava, na esperança aleatória de que do mais à vontade de algumas lhes pudéssemos ver as pernas.

A virtude maior do pátio do meu liceu é que nele se confundiam, misturados sem diferenças, os mais novos com os mais velhos, num recinto igual para todos, por mor do jogar à bola, ostensiva e funcionalmente de trapo, de modo que provinha como uma só geração, num só tempo de abrangência, o convívio comum das várias idades de entre os primeiros até ao último ano. Ainda que de vez em quando se gritasse com alarido e se corresse de magote para assistir: - Porrada! Porrada! Chamava-se Joaquim Panasco o jardineiro sem nada para jardinar, terra batida que ele varria com um basculho a fazer pó.

Ao toque da campainha para as aulas, lá íamos cantando em coro “São horas de enrolar a trouxa, boa noite, tia Maria”. Aquele pátio! com o tal cedro legítimo do Líbano que ao morrer foi abatido. A araucária ao canto, verde escura e empolgante, onde nos aturdíamos de lazer. Aquele pátio! aplainado. À tarde, ficava-se pelo pátio às temporadas, lassidão, a descansar, e o sol, que enlaguescia também por aqueles bancos espessos, ondeados, de cimento, brunidos de tantos fundilhos, sobrepunha-se e alastrava e repetia o sobressalto, com tristeza, de um remorso sem razão ou medo por definir. Nada ainda declarado. Voltar para casa assim era o descrédito de como se passara o dia que acabava.

Tudo isto acontecia na escola onde eu andei, que era um liceu, entre 1945 e 1950, um ano de grandes festas na cidade, pelo 4º centenário do seu foral.