PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

Os professores — sujeitos de desenvolvimento curricular

Antonieta Lima Ferreira
Professora de Português do 3.º ciclo e Secundário
Formadora
Adjunta do Secretário de Estado da Educação (2015-2019)

Olhar para os caminhos percorridos pela escola nestes últimos anos é obrigar-me a um exercício difícil, em que me enrolo na busca da perspetiva.

Sei bem de onde olho, e de onde tenho vindo a olhar nos últimos quatro anos, diariamente na busca de outros olhares, que ajudem o caminho.

Se é para mim certo que nunca me satisfiz com uma perspetiva, está perto da verdade assumirmos que o nosso olhar, no caso, o nosso olhar profissional, é sempre marcado.

Essa nossa forma marcada de olhar a escola, e as oportunidades que procuramos ou que nos encontram, constrói-se do saber, da experiência e das experiências, do contexto real, dos que conhecemos como sendo parte da escola, da nossa escola, daqueles de quem mais gostamos e respeitamos, do que nos chega a casa, quando para além de professores somos mães e pais ou tios e avós. Sair da escola e a ela regressar após passagem pela administração é também em si uma forma de construir esse olhar.

E aquela visão, para que não se gaste numa sucessão caleidoscópica, e seja capaz de definir traços claros de luz, daqueles que nos orientam a ação, precisa da assunção de prioridades, desideratos, princípios que orientem as ações educativas. E se os princípios são comuns, as ações são por natureza distintas. Tão distintas quanto as comunidades educativas, os seus atores e os seus parceiros.

Da singularidade das comunidades, das escolas, dos alunos, fala-nos o diploma do currículo, o Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, porque, assentando num desenho curricular de âmbito nacional, em cumprimento da Lei de Bases do Sistema Educativo, consagra o processo de autonomia e flexibilidade, assumindo a sua apropriação pelas escolas como a resposta, em contexto. O diploma é, por isso mesmo, mas não só, pouco prescritivo.

É um diploma de grandes princípios e finalidades, que apresenta, é certo, uma visão de currículo — integrando ensino, aprendizagem e avaliação; valorizando, como estruturantes, todas as componentes curriculares; estabelecendo as diversas ofertas educativas e formativas como filhas legítimas de um deus maior — e que acumula, ao longo do seu articulado, uma quantidade significativa de designadamentes e nomeadamentes, a par de vários entre outros, encabeçando listas de opções curriculares, de dinâmicas pedagógicas, ou de outros instrumentos de conceção e operacionalização curricular.

A opção por listagens de possibilidades, não exaustivas, só pode ser bom sinal. Independentemente da perspetiva, concordaremos todos na necessidade de, em contexto, se adequar desenvolvimento curricular, de, atento o projeto educativo da nossa escola, estabelecer as prioridades que melhor respondem àqueles alunos.

E a prioridade é mesmo essa: os nossos alunos e a qualidade das suas aprendizagens. Uma leitura atenta do diploma, uma escuta atenta de quem o lê e dele se apropria, diria mesmo, algum crédito oferecido à razão da sua existência deixará claro o seu intuito primeiro. E esse não é a autonomia nem a flexibilidade curricular, nem tão-pouco a inovação.

Esses são meramente instrumentais, peças de que se tira partido para desenhar currículo. Um currículo que queremos acessível a todos, porque a todos é exigido. 

Não valerá a pena, estou em crer, apostar num discurso que visa o descrédito das medidas e que se quer ver sustentado na dicotomia disparatada[1] que é ensaiada mais ou menos como: Afinal agora é flexibilidade ou resultados escolares?

De facto, embora sabendo que o processo é demorado e que se desenvolve a ritmos diversos, de acordo com as escolas, as suas necessidades e urgências e os seus profissionais, é claro que ninguém prossegue autonomia e flexibilidade per se. E também ninguém, no desenvolvimento dos projetos, tem por fito último ser inovador. As escolas e os professores sabem-no.

O que (n)os move? As aprendizagens de todos os alunos. A qualidade e a universalidade do acesso. Nesta medida, a autonomia e flexibilidade — a apropriação em contexto do currículo (e de um currículo em que o essencial seja claro e vocacionado para um perfil de alunos no final da escolaridade) — é a resposta mais adequada, por ser aquela que cria melhores condições para que todos aprendam mais e aprendam melhor.

Sendo instrumental, a prerrogativa de autonomamente gerir um currículo que se flexibiliza em contexto põe foco sobre os professores (também sobre os alunos) enquanto coautores curriculares, agentes do desenvolvimento desta matéria central da escola[2]. Já por várias vezes tive a oportunidade de, em debates, sublinhar a necessidade de este nosso resgate não ser deixado por mãos alheias. Gosto de nos pensar, aos professores, como peças importantíssimas, centrais. Especialistas num saber e na didatização desse saber. Para tal, o currículo é a matéria prima. E as salas de aula os espaços para a aprendizagem, que se projeta fazendo perguntas às nossas opções: Por que razão planeamos a unidade didática desta forma? Por que aderimos a este projeto? Porquê este domínio de autonomia curricular? Que impacto tem esta medida? Como avalio isto?

Sim. E as perguntas trazem inquietude. Se é verdade que os professores têm outras expectativas, legítimas, que compõem os seus cadernos profissionais, engana-se certamente aquele que veio à profissão à espera de uma quietude morna, de aplicador curricular. Se o compromisso é dar-lhes, a todos, a aprender mais e melhor, então os dias são diversos, os desafios também e a ambição é grande.

Olhar para este tempo de transformação da escola é ver-nos e ouvir-nos a discutir currículo. E para mim, que sempre me incomodei com declarações, muitas vezes nascidas entre pares, que nos colocam como fatalmente modeláveis, de uma plasticidade preocupante, perante o que alegadamente esperam de nós, este é um tempo bom.

Ver-nos agentes, assumidos sujeitos de desenvolvimento curricular, é motivo de grande satisfação. É a oportunidade de não mais abrirmos mão do que nos distingue. Somos agentes de desenvolvimento do currículo. E isso é uma imensa responsabilidade. Maior só mesmo a responsabilidade de contribuirmos para que todos aprendam mais e melhor!


[1] Dicotomia disparatada é expressão que peço emprestada ao título do recente livro de João Costa e João Couvaneiro, Conhecimentos vs. Competências – Uma dicotomia disparatada na educação.

[2] Permito-me a liberdade de, neste contexto, identificar um dos princípios do DL n.º 55/2018, de 6 de junho, de que mais gosto. Transcrevo o inscrito na alínea d) do artigo 4.º: Reconhecimento dos professores enquanto agentes principais do desenvolvimento do currículo, com um papel fundamental na sua avaliação, na reflexão sobre as opções a tomar, na sua exequibilidade e adequação aos contextos de cada comunidade escolar.