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Percurso industrialmente construído.

Carlos André Correia de Carvalho
 

             Aos Amigos, Professores e Funcionários.

Escola Secundária de S. Lourenço, 1999/2005

 Costuma-se dizer que a vida é feita de páginas viradas, correspondentes a ciclos que qualquer e cada um de nós atravessa. Naturalmente que o cliché se encontra usado e gasto, de tantas vezes ser utilizado, condignamente ou não, nas mais variadas e diferentes situações. No entanto, para mim, que tenho feito pautar a minha vida pelo caminho das Letras, a expressão ganha uma visão diferente, deleitada sobre um olhar atento que presto quando a metáfora é proferida.

Em boa verdade, a vida não é só feita de páginas viradas. É feita de páginas rasgadas com raiva, riscadas com sofrimento, memoravelmente sublinhadas ou alegremente rabiscadas, anotadas, conversadas, repletas de bonecos decifráveis e indecifráveis, consoante o espírito artístico que comandava a caneta, e de textos secretos, sinceros, de amor, de escárnio ou simplesmente de puro entretenimento pontual e momentâneo.

Tal como qualquer livro de escola, que nos vemos obrigados por manter aberto enquanto decorre a aula, como se tal significasse que avidamente bebíamos as palavras sábias do pedagogo e do sábio ‘de hora e meia’, também a vida está repleta destes momentos. De todos estes momentos. E guardamo-la, mantemo-la, recordamo-la e vivemo-la desta forma.

Nós não somos nada sem memória. Não somos ninguém sem recordações. Seremos apenas, como diz um estimado amigo, fantasmas, sombras rápidas que percorrem uma parede na penumbra de uma noite mal iluminada, cujos contornos não são perceptíveis e que muito menos denunciam as reais formas que a originaram. Nós precisamos de ter imagens que guardamos, por mais ténues que sejam, modificadas, aferidas, contadas ao nosso jeito, quantas vezes diabolicamente aumentadas ou até mesmo tumulariamente silenciadas?

A nossa vida é, segundo o cliché, o nosso livro. E é neste livro que guardamos todas estas memórias. E são precisamente as memórias que nos assaltam quando viramos a página, sendo apenas destas que nos podemos socorrer quando se trata de contarmos a nossa História.

Foi me pedido há algum tempo por uma amiga, outra estimada amiga, de longa data, responsável por uma parte daquilo que hoje sou, que em meia dúzia de caracteres contasse como havia sido a minha vivência na Escola durante os anos em que por lá tinha permanecido. Se bem que a meia dúzia de caracteres é um número muitíssimo inferior daquilo que eu poderia aqui redigir sobre este tema, que me é por demais querido, naturalmente que me obriguei a aceitar o aventureiro desafio. 

Remontar aos tempos em que estudei na S. Lourenço, ou na Industrial, como também era hábito dizer, principalmente por servir de oposição ao Liceu (esse sim, sempre Liceu, não havia espaço a segundos nomes…), já não vai sendo, convenhamos, tarefa muito simplificada, o que não deixa de ser um pouco estranho dada a minha tenra e imberbe idade. Efectivamente, a nossa memória é por demais selectiva, e nem sempre me é possível compreender o facto através do qual guardei no disco rígido cerebral determinados momentos e perdi para sempre outros tantos, que em grande medida mereceriam certamente um destaque para a posteridade etária.

Em todo o caso, é a aparente aleatoriedade que reveste o nosso álbum de recordações que nos constrói, que nos fortalece, que nos faz saber dizer quem somos e o que fomos, colecção de post-it’s rabiscados, fotografias amarelecidas, postais ilustrados com um legenda, um selo e um carimbo desvanecido, tudo guardado num baú, no nosso baú, o nosso álbum de recordações, porque todos nós temos um passado.

Lembro-me perfeitamente do primeiro dia em que entrei, aluno, na Industrial. Lembro-me tão bem do primeiro como me lembro do último, apesar de, entre eles, terem decorrido seis anos, os quais correspondem ao maior período de tempo que, até ao presente momento, passei de forma ininterrupta num estabelecimento de ensino.

Recordo-me perfeitamente, ou pelo menos tão perfeitamente quanto me é possível, do primeiro dia em que me dirigi à S. Lourenço para ter as habituais apresentações, as ultimas que foram feitas a um turma de 7º ano. Provindo, à data, de outra escola da cidade, a opção pela Industrial tinha sido tomada, em consonância com alguns colegas da antiga turma (com mais relevância dada à opinião dos pais do que à dos filhos, como se compreende, em tenras idades), tendo em conta a fama de que a antiga Industrial tinha, em matéria de corpo docente, em exigência, de que se gabava detentora, mas também pela existência de turmas até ao 12º. Este ultimo dado, recordo-me, foi um dos que teve maior peso, isto porque, se por um lado, a permanência durante seis anos num mesmo espaço de leccionação tinha a vantagem de contribuir para uma aprendizagem mais prolongada no tempo e acompanhada, na longa duração, por outro lado o contacto com colegas mais velhos, de uma faixa etária mais anançada nos anos, poderiam exigir dos caloiros industriais um amadurecimento e um respeito que de outra forma não se conseguiria – a idade é um posto…

Julgo que tudo isto, e muito mais, acredito pia e religiosamente, me bailaria na cabeça no dia em que a minha mãe me deixou de carro na escola, certamente após a encomenda (que não deveria ter sido feita pela minha pessoa) do sermão do costume, que só as mães quando deixam os filhos à porta da nova escola sabem fazer. Diz-se que é um discurso que, mais do que passado de mães para filhas, já vem embutido no código genético materno e emerge de forma categoricamente repetida quando as situações assim o exigem. E esta era, seguramente, uma delas.

Aquela manhã de meados de Setembro havia amanhecido chuvosa, mas uma chuva quase ridícula, miudinha, pequenina, que caia e formava pequenas bolhinhas delicadas, infantilmente inofensivas, permanecendo intactas nalgumas superfícies menos permeáveis, tais como o impermeável que eu trazia vestido naquele dia. A balbúrdia era, no entanto, grande ao portão da escola. Os veteranos aguardavam de forma excitada e empolgada a chegada dos caloiros, ávidos de os receberem calorosa e carinhosamente, gestos de acolhimento que passavam de modo invariável pela aplicação de algumas cores garridas nas faces e mãos e no enjaulamento das novas jóias da vida selvagem, incivilizada, junto dos portões da escola, naquilo que era um raro momento em se escutava a forma como cada humano melhor sabia imitar os seus congéneres da savana.

Entre o primeiro dia e o último, decorreram seis anos, seis vagarosos e infantis anos, em que subi a escadaria comercial e industrial centenas de vezes, e centenas de vezes entrei naquele átrio aprazível, modernista, rectilíneo, desafogado, iluminado, frequentado pelos sons da rapaziada e pelo cheiro a secretaria e a fotocópias que nas suas faldas habitavam. O sino lá estava, e lá continua, testemunha da época em que outros alunos ali habitaram, separados por sexos como mandava a cartilha da altura (e tal como me lembro da minha mãe me contar, em evocações no passado que sempre se prendiam na raiz da expressão “no meu tempo…”). Apenas de vez em quando tocava, não por necessidade prática!, mas por necessidade de algum afoito provar o que quer que fosse, imbuído nalgum ritual de iniciação secreta estudantil.

A grande escadaria e os seus corrimãos de madeira, que viam deslizar os rabos mais corajosos, mais velozes e com menos vertigens, era o passeio dos alunos, onde nos encontrávamos e conversávamos, provocando a invariável corrida para a sala já em cima do toque de feriado, sobretudo quando a língua falava mais alto do que a responsabilidade de chegar a horas e evitar a reprimenda do professor.

Os estrados de madeira, nas salas, eram as cátedras dos pedagogos durante as infindáveis hora e meia, as quais decorriam entre o débito de informação impresso na lousa, as conversas para o lado, para trás, para a frente (para onde quer que fosse e a paciência do professor permitisse), os escritos e os segredinhos passados de mão em mão ou de dentro das carteiras dos lápis, precisamente porque estávamos na idade em que nem as 24 horas do dia chegam para dizermos tudo quanto temos para dizer, e não podia haver espaços mortos, de silencio e atenção, simplesmente porque era tempo perdido, segundos perdidos para sempre, na idade-em-que-tudo-temos-para-dizer-e-o-tempo-parece-que-escasseia.

Depois havia o recreio e as oficinas, divididos hierarquica e socialmente, com a convicção séria e firme de que ninguém pisa território inimigo, impenetrável e inexpugnável. Todos sabiam a posição que ocupavam na pirâmide principal da secundária e raramente se dava espaço a mobilidades e cruzamentos de raças estudantis. O bar talvez fosse, por necessidades práticas e óbvias, o espaço mais cosmopolita da Industrial – naquilo que uma escola secundária de cidade de província consegue ter de mais cosmopolita – dado que aqui sim!, as pessoas era obrigadas a passar umas pelas outras. De croissant com queijo ou de pastel de carne na mão, aqui convivíamos verdadeiramente e aqui se vivia o genuíno espírito da escola, encostados que ficávamos às mesas altas da Mafaldinha ou recostados nos desconfortáveis bancos de espaldar alto, estacionados à sombra da visão imaginária de Portalegre medieval.

Ainda me lembro perfeitamente do vai-vém vivido naqueles corredores, que de extraterrestre tinha pouco, mas de galáctico muito, pequeno microcosmos em que procurávamos, dia após dia, estar com os colegas imbuídos no universo de cada um, construindo-nos, reconstruindo-nos, com a ânsia de quem quer crescer à força e escapar à carga de irresponsabilidade e infantilidade, imputadas e apontadas todos os dias, mediante o dedo acusatório dos outros ou do peso da consciência de cada um.

Deveria ser certamente Junho, a data já não consigo precisar. Não sei, mas era capaz de apostar que já deveria ser um daqueles dias alentejanos que amanhece em ebulição, em que não há sombra ou leque improvisado que nos valha e nos faça esquecer que viver no Saara português implica viver num deserto (relativamente) civilizado, em que faltam os turbantes mas onde, em contrapartida, arriscaria dizer, surpreendentemente os camelos andam direitos, apoiados apenas em duas patas.

Dizia eu que deveria ser certamente Junho, embora a data já não consiga precisar. E a apesar do calor conseguir sublimar qualquer micro-gota que tente sair dalgum espaço húmido, a torrente emocional que vivi, naquele ultimo dia de aulas, não seria passível de ser seca, nem que a temperatura triplicasse os valores acusados pelo termómetro. Foi absoluta e absurdamente incrível, poderia até dizer única, a depressão que se abateu sobre mim naquele dia, consciencialização do fim de um ciclo, de um adeus proferido entre dentes, de uma despedida para muitos, muitos de quem gostava e que faziam sentido ali, naquela escola, durante aqueles anos.

Cheguei a desejar, nem que tenha sido por breves segundos, a cristalização daquele espaço e daquela mole, como se procurasse evitar o sofrimento que me causaria a perda, o luto que não estava preparado para fazer, a separação forçada e quase litigiosa que me havia sido imposta. Costuma-se dizer que a vida é feita de páginas viradas, correspondentes a ciclos pelos quais qualquer e cada um de nós atravessam. E apesar do cliché, este dia, cuja data concreta não sei precisar, foi sem dúvida um momento de viragem, de amadurecimento forçado, de vida catapultada para outro sítio, para outro mundo, com novos amigos, novas emoções, novas aprendizagens. Porque quando a página chega ao fim, escrita, rabiscada, riscada, anotada, e não há outra forma de continuar senão começar a escrever, a rabiscar, a riscar e a anotar outra página, nova, limpa, vazia.