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Da Escrita

António Jacinto Pascoal
Agrupamento de Escolas N. 1 de Portalegre

Escrevemos para não esquecer. Ou simplesmente para deixarmos uma marca. É sempre possível conceber a escrita como uma evocação da oralidade (é mesmo um artefacto concreto da cultura), não apenas daquilo que foi dito e se quer transcrito, mas da preservação da memória. Em certa medida, a escrita torna presente a ausência da fala, reconstitui-a, reelabora-a, aperfeiçoa-a. Desde o epitáfio à elegia, do romance aos rabiscos de W.C. (até o diário falsamente intimista), a escrita encerra a necessidade de tornar público, de forma mais ou menos ousada, as nossas dores, amores, ódios, medos, espontaneidades, tibiezas: em suma, o nosso estilo. O estilete de cana (da forma latina stilum) era, aliás, a pré-caneta com que se grafavam as famosas tabuinhas enceradas, naquela que foi possível apurar como a forma mais antiga da escrita humana, a escrita cuneiforme suméria. Depois, o estilo apurou-se, jamais recusando o mistério que se desenrola na alma. A caligrafia, como a podemos imaginar ainda hoje, já afastada de uma uniformidade escolar, passou a ser o estilo pessoal da grafia, ainda que não fosse a representação (o estilo) de uma certa forma semântica de escrever. Não é apenas a caligrafia que nos torna seres individuais enquanto escribas de uma língua, mas o modo como tornamos a nossa escrita a medida particular do nosso espírito.

Estamos todos de acordo quanto ao facto de a escrita ser menosprezada e tratada com frivolidade em todas as esferas sociais, incluindo as escolas – chegou mesmo ao estado da choldra. Não por culpa de quem quer que ela mantenha algo de asseado, mas por birra de um sistema que se instalou e que toma como beatice aquilo que se redige com disciplina linguística e elegância literária. Não falo dos arremedos de artificialidade com que assustamos os alunos, mas da necessidade imperativa de que sintam que a escrita não passa de um meio de organizar frases com algumas ideias dispersas. Tudo o que se exige quanto à coesão e coerência textuais não é mero escrúpulo de professor, mas uma exigência que o recato e o pudor causam a qualquer pessoa que preze o domínio da língua e o domínio da dignidade. De modo que os alunos, por mais que julguem o contrário, têm de correr a vida infernal do sacrifício da redacção. Gosto da palavra redacção por vários motivos e em especial por ter caído em desuso, mas ser-me, enquanto conceito operativo e afectivo, indispensável.

A escrita afasta-se, em muito, da oralidade. É, aliás, um polícia dela. Tem maior responsabilidade, autovigia-se, controla-se. Mas tem o tempo para isso. A oralidade, ao pé dela, é uma estouvada, uma imprudente que passa o tempo a precipitar-se. A oralidade é mundana, a escrita sagrada. É do domínio do sagrado que falamos, quando falamos na escrita e no seu ensino. Um bom escritor faz mais pela língua do que a Assembleia da República.

Quando o professor de Português escreve as suas breves observações nas margens dos testes dos alunos, ele quer unicamente dizer que se assustou (para não dizer indignou). Que se assustou com a forma como foi empregue certo verbo, como determinada vírgula foi ignorada, como o enunciado desprezou a concatenação ou mesmo a segmentação. O aluno – constata o professor – discorre a direito, a talho de foice, manda às malvas os diacríticos, evita todo o género de pontuação, abomina sinais auxiliares de escrita, abusa do verbo “ser”, circula na redundância, inventa amálgamas e truncações, dá coices na gramática, pontapés da ortografia, e termina numa paráfrase da pergunta formulada. Sobram escombros em que a língua, como num holocausto, geme no estertor. Mas o conto não se aplica a tudo e a todos. E de repente damo-nos conta que há quem saiba evitar a frase elíptica, a resposta iniciada por “porque” (mesmo que não tenha sido pedida nenhuma justificação), a definição no formato “X é quando (…)”, o uso dos dois pontos a seguir a verbo copulativo. Há ainda essa espécie rara, dos alunos bons escribas.

A didáctica da escrita não é um devaneio, mas uma obrigação. Nesse sentido, as oficinas de escrita permanecem como aldeias gaulesas a resistir ainda e sempre ao invasor da cacografia. Nelas, pede-se que não se seja indulgente nem paternalista. Convém, ao que julgo, desafiar o aluno: pedir-lhe que descreva alguém que conhece pode ser proveitoso, mas, se repetido, um frete; pedir-lhe que escreva sobre um tema livre, pode ser um sinal de indiferença para com ele; pedir-lhe que escreva sobre uma imagem ou que dê outro final a uma história, ainda que por boa intenção, pode resultar numa infantilidade; pedir-lhe que descreva uma maçaneta (Alice Vieira dixit) ou um lápis pode até ser um desafio maior; pedir-lhe que escreva apresente, num texto, dez razões para detestar escrever pode redundar em algo espantoso. Nunca se sabe. Grande trabalho é escrever. Receitas há poucas.

Em dado passo de um romance de um escritor português contemporâneo, lê-se: «Tornaste-te insuportável, quando te demarcaste da tua profissão. Dizias a ti mesmo: um professor é uma pessoa que se ocupa de ninharias e coisas inúteis que o tornam infantil – certos trabalhos em cartolinas, cartazes e jornais escolares, certos trabalhos de escrita do género “imagina que és um peido e que nesse dia estava vento; faz uma composição em que contes a tua aventura”. Mas talvez te tenhas esquecido de que um professor trabalha com crianças e que, por isso, também se torna numa delas».

Há uma coisa que vem antes da escrita (reporto-me necessariamente ao contexto actual) e que talvez seja o barómetro da sua qualidade: a leitura. Ora esse é outro novelo da barbárie: andamos à solta, entre novelas, “big-brothers”, telemóveis e “Facebooks”. O tempo não está de feição. E para escrevermos e lermos, precisamos dele. Não estou a ver como será possível sair desta crise em que nos atolámos. E, de qualquer modo, não será este o lugar para reflectir sobre isso. Mário de Carvalho disse um dia que somos um povo “capaz de dar cabo de uma estância romana, [mas] que vê e reproduz as falas das telenovelas”.

Uma estratégia uso por vezes com os alunos: a da “limpeza” ou da decomposição do texto. Elimina-se tudo o que é acessório (orações com função de modificador, complementos, orações subordinadas, constituintes vários, elementos facultativos). E fica o osso. Assim, o aluno, a desmontar a língua como quem desmonta um aparelho, assimila de outra forma o processo inverso, o do acto de vestir o texto. Não é a pólvora, pois isto é o que se faz por aí em tudo o que é escola. Mas contribui para a consciência da linguagem. E por falar nela, se alguma coisa de vantajoso nos trouxe o Acordo Ortográfico, foi precisamente a atenção dada à escrita. Bom, e a saborosa e superior sonoridade de certos vocábulos como “arquitetas”. Nem tudo se perde.

Termino novamente com Mário de Carvalho: «Não temos o direito de estar a escrevinhar apenas por escrevinhar», diz ele. Mas isso é para os bons. Para nós e para toda esta gente que começa a escrever, um conselho: escrevei como se disso dependesse alguma coisa da vossa vida. Garatujai, para não esquecer. Num banco de jardim que seja.