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Editorial

Educar Sempre

A Minha Escola

XI Cong. Nac. CFAE

- Crónicas de Aprender -

Cronicas de Aprender

Azulejaria de Portalegre

 

Entrevista

Cartoon

 


 

 

Crónicas de Aprender

Rita Salema
 

Lançaram-me o desafio: - Lembrar a escola, recordar o meu passado como professora. Faço-o todos os dias… Mas agora exigem-me que escreva! Poder-se-ão escrever memórias? E registar saudades? Porque eu tenho saudades da minha escola primária, do frio da Serra bem cedo, perto das nove, quando via os meus rapazes entrar na sala com os narizes pingando de geada e granizo. Tinham frieiras, alguns, e eu untava-lhes as mãos calejadas de tardes de enxada com glicerina muito gordurosa que, invariavelmente, deixava nos cadernos nódoas eternas. Tinha, então, uma turma masculina, separada da feminina por um muro suficientemente alto para que eles não saltassem, excessivamente  baixo para que as não ouvissem. Nos recreios, com uma bola de trapos que fazíamos nas horas de trabalhos manuais, eles tornavam-se Eusébios, Pelés, marcavam golos na baliza riscada na terra e esfolavam joelhos e cotovelos. Alguns, os mais reservados, ficavam lançando o pião. Eu saía para junto deles, era então uma jovem professora, e tentava brincar também. Sempre que alinhava no futebol, pelo Benfica, havia gritos: - Cuidado com a Senhora! Olha lá não magoes a Senhora! – E riam-se, desdentados, quando eu lhes dizia que a Senhora estava no céu e eu era só a senhora professora…

Às vezes, estava muito frio. Havia, na sala, uma salamandra velha, muito bonita, que decidimos, num inverno rigoroso, acender. Valeu uma semana de aventura!

Primeiro, trocamos o futebol do recreio por uma ida à lenha. Às cavacas, ensinavam-me eles. Trouxemos também pinhas, caruma, e amontoamos tudo num canto da sala. No dia seguinte, a atividade foi limpar a engenhoca… Todos enfarruscados, demos o serviço por terminado quando o Artur, sempre com os óculos colados com adesivo, afirmou que o melhor era desistirmos porque, fosse como fosse, íamos sujar outra vez. Finalmente, sob os olhares expetantes dos meus rapazes, eu risquei o fósforo. Foi um momento mágico! O velho jornal, que cuidadosamente eles tinham colocado no meio das pinhas, ardeu fazendo fogo azul-amarelo-laranja e eles, extasiados, calaram-se olhando. Depois, as pinhas pegaram e um calorzinho reconfortante começou a invadir a sala. Foi um inverno saboroso, quentinho, cheiroso, às vezes acompanhado até do estalar de algumas castanhas que eles traziam nos bolsos.

Um dia, lá para março talvez, pareceu o inspetor. Estávamos todos sentados no chão, em semicírculo, à volta da salamandra. Eu lia um conto de Miguel Torga, O Nero, e eles ouviam com atenção.

O senhor inspetor teve o que, hoje, se designa de fúria! Ralhou, alertou-me para o perigo do fogo na sala de aula, falou até na ausência de oxigénio (não reparou que as janelas, de madeira velha, não fechavam) e obrigou a acabar com a nossa lareira.

No ano seguinte, fui colocada noutra escola, agora na cidade. Nunca mais tive salamandras na sala de aula, mas lembro-me muitas vezes do cheiro inconfundível das nossas leituras da tarde e dos óculos doridos do Artur…

Será que respondi ao desafio? Afinal, deixei só correr a memória…