Capa | Revista 01 | Revista 02 | Revista 03 | Revista 04 | Revista 05

MENU


Editorial

- Educar Sempre -

O diálogo (im)possível

CE Alice Nabeiro

Formação de Professores

Fronteira Portugal Esp.

SIADAP

 

A Minha Escola

Crónicas de Aprender

Entrevista

Cartoon

 


 

 

A Formação de Professores, o ECD e a Identidade Profissional

Paulo Sucena
FENPROF

Por me parecer demasiado redutora uma análise apenas centrada no articulado do ECD e, obviamente, no da LBSE no que concerne à formação inicial, especializada e contínua do professorado da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, alicerces da identidade profissional dos docentes do impropriamente chamado ensino não superior, optei por produzir uma breve reflexão sobre a nossa identidade profissional tendo em conta que aos diplomas legislativos que constituem como que a “Constituição” da classe docente acontece o mesmo que ao articulado da Constituição da República: tornam-se letra morta perante a prática política dos governos e os contextos que a determinam.

Creio que o que hoje mais atormenta os educadores de infância e os professores dos ensinos básico e secundário não é tanto o modo como se processa a sua formação, mas a resultante dela – a sua identidade profissional a custo afirmada num sistema educativo em crise há longos anos e em circunstâncias extremamente complexas, contraditórias e conflituais, brutalmente agravadas pelas políticas neoliberais que submetem os povos e as nações à ditadura dos mercados financeiros de onde um deus difuso se sobrepõe aos órgãos de soberania de inúmeros países, como acontece com Portugal.

Esta reflexão não pode portanto ser desligada do contexto político, económico e social em que todos os atores do processo educativo se movem, a par de outros, nomeadamente os que advêm da massificação do sistema escolar, da desvalorização da escola e dos diplomas, da insegurança de emprego e profissional, do crescimento de uma sociedade instigada a ser cada vez mais individualista e competitiva, num jogo sem regras nem princípios, que se mostra profundamente hostil a um grande número de adultos e de jovens.

A crise que avassala o país e os desmandos da política educativa dos últimos anos contribuíram para que a escola pública seja percecionada como insatisfatória por muitos portugueses. É frequente vermos o nosso sistema escolar conotado com a iliteracia, o desemprego juvenil, a exclusão escolar e até com a violência social. Por outro lado, o clima nas escolas caracteriza-se, em alguns casos, pela insegurança, pelo desinteresse de um significativo número de alunos, pela perturbação causada por mudanças contínuas impostas pelo poder político, pela angústia vivida por muitos docentes, abalados por sucessivas medidas que põem em causa a sua identidade profissional, pelo desencanto de quem se vê apoucado na sua profissionalidade e até pelo desinvestimento dos que se cansaram de lutar por uma escola democrática e de qualidade para os que a frequentam. É perante esta realidade que os docentes devem refletir e agir relativamente à formação da sua classe profissional.

De outro ângulo, a identidade e a ética profissionais dos docentes (matéria contemplada no ECD) confrontam-se com as novas finalidades impostas às escolas que já não se prendem tanto com a promoção cultural, onde cabem o conhecimento e a ciência, a promoção social e cívica, mas cada vez mais visam uma suposta empregabilidade. Estamos, por um lado, perante a subordinação da educação a uma lógica mercantil, com a consequente visão instrumental dos processos educativos e a turbação da identidade profissional dos docentes e, por outro, perante um sofisma falho de ética, porque a instrução e a formação não criam empregos num país brutalmente agredido pelas políticas recessivas do atual governo. Na verdade, a presente conjuntura agrava grandemente o cenário, apenas esboçado, em que se move a classe docente sobre quem recai, entre outras, a responsabilidade de contribuir para que Portugal cumpra as metas educacionais da União Europeia para 2020.

Mas, permita-se-me que afirme que não devemos ficar amarrados à frustração causada, ao longo dos anos, pelos governos cavaquistas, pelo vendaval destruidor do ministério Maria de Lurdes Rodrigues, pelas fragilidades políticas do ministério Isabel Alçada e muito menos pelo neoliberalismo e neoconservadorismo desarticulado e agressivo do ministério Nuno Crato, antes devemos somar forças para alterar esta situação, motivados pela construção de uma escola pública de qualidade e democrática, onde a equidade seja um pilar, uma escola, como queria Vitorino Magalhães-Godinho e não quer Nuno Crato, que seja “um espaço de viver e não apenas de aprender”. Aos objetivos de aprender a conhecer, a fazer e a ser juntar-se-á o de aprender “a viver juntos”, fomentador da solidariedade coletiva. Estamos a apontar para uma escola onde os professores não são pau para toda a colher, mas profissionais que livre e autonomamente se aplicam a criar as condições para que a escola possa funcionar bem o que implica que o professor aperfeiçoe permanentemente a sua capacidade de organizar o trabalho, sem jamais anular a sua identidade profissional. Identidade que se tornará mais consistente com o reforço da intervenção pública do professor e com o incremento da sua intervenção social e cultural, porque, de algum modo, ele pode estimular positivamente os seus alunos com a atitude que assume relativamente aos problemas que ocorrem na sociedade. Esta será uma leitura expansiva do perfil do professor consagrado no ECD, mas cuido que útil.

Este modo de estar contribuirá para o professor perceber melhor Paulo Freire quando diz que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo; ensinar exige liberdade e autoridade; ensinar exige saber escutar; ensinar exige querer bem aos alunos; ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”.

No nosso entender, este perfil de professor não se pode expandir numa escola que permanece excessivamente burocratizada, afogada em comandos do poder central, amputada de uma gestão democrática, uma escola castradora de uma democracia participativa, com currículos e programas orientados mais para o aprender para o trabalho do que para o aprender pelo trabalho, uma escola que dificulta o papel do professor como emancipador, traço essencial a desenvolver na formação de professores, inscrita em qualquer ECD do mundo.

Os professores e as professoras têm um trabalho árduo pela frente, que sobrepuja as páginas amarelecidas do ECD, na construção da identidade profissional, alicerçada numa sólida formação inicial e contínua, e na edificação de uma escola democrática que deixe, como até agora, de lhes estreitar as suas margens de liberdade e autonomia. E vão atirar-se a esse trabalho com toda a esperança, porque ela só morre em quem se derrota a si próprio e os docentes não são desses. Confiamos que rejeitarão o novo discurso educativo escrito em cratês e continuarão a lutar por uma melhor formação inicial e contínua, por um melhor estatuto profissional e por uma escola pública, tão vilipendiada pelas políticas dos últimos anos, que contribua para a criação de uma sociedade de homens e mulheres livres, cultos, críticos, participativos e solidários. É esse futuro que todos nós temos de nos prometer, porque, como escreveu Walter Benjamim, nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa.