PROFFORMA

REVISTA ONLINE DO CENTRO DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DO NORDESTE ALENTEJANO

 

 

 

 

 

Entrevista PROFFORMA ao Professor Doutor David Justino

Luísa Moreira
CEFOPNA

Profforma – O PNPSE, criado por resolução do conselho de Ministros em 2016, veio convocar a Escola para uma radical transformação de práticas. Considera que os objetivos foram (ou estão a ser) alcançados?

DJ – Espero e tenho a certeza que não foram alcançados. A educação, entendida enquanto instituição, não se compadece com transformações radicais das práticas, principalmente quando estas não foram suficientemente testadas e validadas por uma monitorização rigorosa dos seus efeitos. Existe voluntarismo a mais e fundamentação e planeamento a menos. Mudar só por mudar, sem intencionalidade nem objetivos claramente definidos, pode ser pior do que deixar tudo na mesma.

Profforma – A Escola Pública de hoje, século XXI, em Portugal, poderá ser classificada como estando a par da transformação do mundo atual?

Há uma frase que circula nos meios educacionais que revela muito da ignorância que existe sobre a educação: “temos uma escola do século XIX, professores do século XX e alunos do século XXI”. Em primeiro lugar, já não temos a escola do século XIX. Quem estudou e conhece o que era a escola do século XIX só por estultícia poderá considerar que a escola atual é idêntica à de então. Em segundo lugar, os professores de hoje também já não são os professores do século XX, ainda que muitos tenham nascido nesse século. Trata-se de uma falácia assente em argumentos falsos. Muitos continuam em busca do mito da “escola nova”, esquecendo que nas últimas décadas temos assistido ao desenvolvimento de uma “escola renovada” que vai incorporando pequenas inovações e melhorando os seus métodos e os seus processos. Há ainda muito por melhorar? Há! Mas teremos de o fazer com trabalho, reflexão, fundamentação e planeamento, sem pressas nem ruturas radicais.

Profforma – Parece, e os professores queixam-se de tal, ter acontecido nos últimos 40 anos uma clara desvalorização da classe docente. O que julga que possa ter contribuído para tal facto?

A condição docente tem-se degradado e o seu reconhecimento social ainda mais. Este é o resultado do processo de massificação do acesso à profissão, sem critérios de qualidade e sujeito ao igualitarismo expresso na palavra de ordem: “todos professores, todos iguais”! A escola pública e o Estado têm o dever e a obrigação de escolher os melhores profissionais e remunera-los de acordo com as suas capacidades humanas e profissionais. Mas não é isso que tem acontecido, alimentando a “vox populi” de que qualquer um pode ser professor desde que habilitado para o efeito. Por outro lado, assistimos à progressiva proletarização simbólica da classe docente e às várias tentativas de os transformar em “mediadores” informais das aprendizagens, quando sabemos que só com a valorização do seu conhecimento pedagógico, cultural e científico, poderão fazer a diferença com o senso comum.

Profforma – A escola da Ponte, a Escola na Finlândia, etc… há muitos modelos. Fará sentido adotar modelos para Portugal?

Nada tenho contra a adoção de modelos estranhos, ainda que prefira a construção autónoma e reflexiva de soluções próprias que possam coexistir dentro do mesmo sistema e em situação de concorrência. O problema está em saber como com os mesmos recursos e recorrendo a processos diferentes, se obtêm melhores resultados, ou seja, alunos mais capacitados como expressão de aprendizagens mais qualificadas.

Profforma – Em relação ao primeiro ciclo, considera que é urgente voltar a deixar que as fadas entrem na escola ou, pelo contrário, fará sentido a disciplinarização neste ciclo?

Sou claramente contra a disciplinarização do 1º ciclo, que é algo que se tem vindo a acentuar durante a última década, em contradição clara com o estipulado na Lei de Bases do Sistema Educativo. Mas oponho-me também à entrada das fadas: há muito pouca magia e varinhas de condão nos modernos processos de ensino e aprendizagem. Tem de haver mais competência, melhor conhecimento e melhor pedagogia. Essas imagens românticas não têm cabimento na escola que ambiciono.

Profforma – Considerando a vertiginosa transformação da sociedade atual, como avalia a homologação do Perfil do Aluno à saída da Escolaridade Obrigatória?

Voltamos à ideia de que é urgente tudo mudar. Quando as sociedades atuais são varridas pela mudança sem rumo e pela obsolescência dos adquiridos, teremos de nos fixar sobre o que não muda, sobre o que está consolidado. Que eu saiba as leis e conhecimentos fundamentais, da física à matemática, da história à geografia, continuam a ser os mesmos. O Teorema de Pitágoras, ou a segunda lei da termodinâmica, continuam a ter validade, a localização de Portugal ainda é a sudoeste da Europa e a sua fundação continua a ser no ano de 1143. E são esses conhecimentos e competências que teremos de valorizar de forma a capacitar os nossos alunos.

Já tive oportunidade de publicamente criticar o documento do Perfil do Aluno. É uma alteração que vai no pior sentido da evolução dos sistemas de ensino. Baseia-se nas teorias do capital humano e da gestão por competências advogadas pela OCDE e visa orientar os processos educativos para a formação de profissionais, mão-de-obra para o mercado de trabalho, quando o que defendo é a formação de pessoas, livres e autónomas, capacitadas para se adaptarem aos desafios do futuro, principalmente para aqueles que ainda não conseguimos antecipar. Só uma formação de base sólida e assente no conhecimento e nas maneiras de pensar os problemas, poderá prepará-los para uma sociedade do século XXI cujos contornos fundamentais ainda não dominamos.

Profforma – Como vê o projeto de flexibilidade curricular, agora que vai ser alargado a todo país?

Noto que a entrevistadora segue fielmente a agenda do atual governo para a educação, facto que não me inibe de responder a qualquer das questões. A gestão flexível do curriculum é um bom princípio, na medida em que responsabiliza os professores e as escolas no que designamos por desenvolvimento curricular. O problema reside no facto de os bons princípios quando aplicados a preceito e com o cuidado que merecem, podem conduzir a boas aprendizagens, mas, caso tal não se verifique, poderá ser um autêntico desastre que se torna irreversível para o desenvolvimento das crianças e jovens. É precisamente o caso da diferenciação pedagógica que, na maior parte dos casos, favorece os alunos com maior capital familiar, não beneficiando aqueles que mais precisariam, ou seja, os alunos provenientes de famílias com menor capital escolar e cultural. Por isso todo o cuidado é pouco. Quando fazemos experiências num laboratório, se partirmos um tubo de ensaio substituímo-lo, se a experiência dá um resultado inesperado, repetimo-la. Quando fazemos experiências com crianças e jovens na escola os danos são dificilmente reversíveis.

Proffoma – Se tanto falamos em transformação do paradigma educativo, parece ser óbvia a valorização da formação contínua de docentes. Como considera que a mesma deve acontecer?

Independentemente de querermos alterar o paradigma educativo – quem somos nós para nos apropriarmos do direito de o fazer? – a formação contínua de professores terá de ser orientada para a melhoria dos processos de ensino e aprendizagem. Tudo o que possa constituir adquiridos teóricos e metodológicos devidamente validados poderá contribuir para, através da formação de professores, qualificar não só a maneira como se ensina, mas, mais importante, a maneira como se faz aprender. Para isso é urgente identificar com rigor as necessidades de formação. Este diagnóstico nunca foi feito: parte-se do senso comum, das ideias feitas sobre o que os professores fazem ou não fazem, sabem ou não sabem, e aplica-se a cartilha. Assim, é claro que se trata de dinheiro e esforço deitados à rua.

Profforma – Como analisa o trabalho desenvolvido pelos CFAE (Centro de Formação de Associação de Escolas, ao longo de 25 anos de existência e na atualidade?

Muito desigual e com altos e baixos decorrentes da sucessão de políticas contraditórias. Sem existir um compromisso sobre os desenvolvimentos de médio e longo prazo dos sistemas educativos e da própria formação de professores, será difícil superar este efeito do “faz e desfaz”. Precisamos de compromisso e visibilidade para as políticas educativas e não sermos sujeitos a esta alternância que só gera instabilidade. A formação de professores tem sido vítima ora da abundância, ora da escassez de financiamento; da sucessão de políticas de natureza contraditória, de continuidades e reversões radicais. Assim, é difícil retirar da formação o potencial que ela poderia representar na qualificação das escolas, do ensino e das aprendizagens.

Profforma – Aumentar o sucesso educativo é um compromisso assumido pelo governo de Portugal. De que sucesso estamos a falar?

Para responder a esta pergunta seria preciso uma outra entrevista. Para simplificarmos poderemos considerar “mais sucesso” como: diminuição da retenção escolar que não seja por via meramente estatística, a redução do abandono escolar, e o melhor desempenho dos alunos pelo desenvolvimento de melhores e mais diversificadas capacidades. De pouco me serve que os alunos se sintam mais felizes na escola se não conseguirem ser felizes na vida adulta. Invocando as palavras de Aristóteles: a educação é como uma árvore cujas raízes são amargas, mas os frutos são doces. Provavelmente, se quisermos tornar menos amargas as raízes arriscamo-nos a tornar os frutos menos doces, ou então, de tão altos onde estão só alguns é que conseguem lá chegar.

Profforma – Considera que a avaliação externa certifica com rigor o sucesso?

Não existem processos de avaliação 100% rigorosos. A avaliação externa das escolas e das aprendizagens é um instrumento indispensável para aferir e complementar a avaliação interna. Têm uma vantagem: representam uma enorme capacidade de mobilização dos alunos, dos professores e das escolas, dificilmente equiparável a qualquer outro instrumento. Por outro lado, são um instrumento para avaliar até que ponto o que se ensina e como se ensina, corresponde ao que se aprende. Estão associados a um poder regulatório com alguma eficácia. Sem eles, nem dispomos de informação sobre o que está ou não está a ser aprendido nem base de fundamentação para as políticas de qualificação do ensino. Prefiro ter instrumentos que não são 100% rigorosos do que não ter instrumento nenhum. Se eles retratam ou não o sucesso, tratando-se de instrumentos limitados apenas avaliam uma parte do sucesso. A outra parte cabe à avaliação interna. Por isso apenas contavam 30% na ponderação da classificação final.

Profforma – Qual a sua opinião sobre o atual modelo de acesso ao ensino superior?

Precisa de ser melhorado de forma a responsabilizar as instituições do ensino superior na seleção e seriação dos seus alunos. Os exames do ensino secundário têm como objetivo a avaliação das aprendizagens e não um critério para seriar os alunos no acesso ao ensino superior.

Profforma – A mudança de práticas de aprendizagem implica, cremos, a mudança das práticas de avaliação. Crê que essa alteração está de facto em curso? Será que na Escola a máxima de Bruner “a avaliação deve ser um andaime das aprendizagens” é tida em conta?

Julgo que não. Há uma clara contradição entre o que se expressa no Perfil do Aluno, valorizando as competências adquiridas, e o sistema de avaliação. Como se avaliam competências? Qual o seu peso no processo global de avaliação? Será que a maioria dos professores domina as técnicas e os instrumentos indispensáveis à avaliação de competências? Querer mudar o curriculum centrando-o nas competências e mantendo o sistema de avaliação centrado nos conhecimentos, dificilmente dará bons resultados e arrisca-se a ficar pela retórica educacional.

Profforma – Em sua opinião, a Escola Pública é, de facto, uma Escola democrática e para todos, sendo para cada um?

Não sei se o é, mas seria bom que fosse esse o objetivo. Independentemente de ser mais ou menos democrática, mais universal ou mais personalizada, o grande desafio está em tornar a escola pública num espaço de excelência educativa a que todos possam aceder e dela possam beneficiar. Tudo o que vai para além disto, poderá ter etiquetas muito interessantes, mas arrisca-se a não passar de retórica e boas intenções.

Profforma – Se, por mera hipótese académica, fosse Ministro da Educação no próximo ano, quais as três medidas mais urgentes que tomaria?

Pode ter a certeza que essa hipótese não está nos meus planos. Sinto-me muito mais confortável e recompensado na conceção do que na execução das políticas educativas. Mas há uma posição que eu tomaria: nos primeiros seis meses, não aprovaria nenhuma medida – a não ser para responder a situações absolutamente urgentes e inadiáveis – e passaria esse tempo a visitar as escolas e a falar com os diretores e professores sobre a melhor maneira de concretizar o programa de governo. E há um princípio que respeitaria em absoluto: é preferível melhorar o que está mal, do que mudar de maneira mais ou menos radical. Para isso é necessário obedecer a três requisitos: diagnóstico rigoroso e avaliação das situações, busca de compromisso com os atores e as forças políticas de forma a assegurar a continuidade das políticas, planeamento e gradualismo das medidas e ações a desenvolver. Ou seja, precisamente tudo ao contrário do que está a ser feito!